Lactobacilos e todas as suas Variáveis
- vitorreis222
- 10 de jun.
- 5 min de leitura
Já comentei em posts anteriores que a microbiota vaginal saudável é composta pelo predomínio de lactobacilos, com equilíbrio de outros microrganismos, como as bactérias anaeróbicas (aqui destaco a Gardnerella spp) e os fungos (como a Candida albicans) - se você não leu o post Corrimento: normal ou anormal?, te recomendo a leitura para entender um pouco mais sobre o conteúdo vaginal fisiológico.
Porém, uma pergunta sempre aparece: por que umas mulheres, mesmo com microbiota vaginal saudável, ficam mais propensas à corrimentos de repetição, mesmo com todas as medidas de higiene e cuidado íntimo feitas? Será que existe alguma suscetibilidade intrínseca maior a infecções e disbioses? E foi nesse ponto que, graças às novas tecnologias e às novas possibilidades de estudo microbiológico, surgiu o conceito de que nem todo lactobacilo é igual. E é exatamente sobre esse assunto que vamos conversar hoje, e entender um dos motivos do surgimento dos corrimentos de repetição!
Não existe só um Lactobacilo
Quando vamos conversar sobre os lactobacilos, precisamos fazer uma revisão sobre estas bactérias tão importantes na saúde feminina. O papel protetor dos lactobacilos vem da produção de diversas substâncias e compostos que inibem a proliferação de outras bactérias que vivem naturalmente na vagina, bem como proteger contra a aquisição de bactérias de fontes exógenas (as famosas infecções sexualmente transmissíveis ou ISTs). De forma bem simples, segue aqui o mecanismo geral de ação dos lactobacilos:
Uso de substâncias provenientes do glicogênio para produzir ácido lático;
Ligação na superfície das células epiteliais da vagina, competindo por espaço com outros microrganismos;
Liberação de substâncias que matam outras bactérias;
Produção de peróxido de hidrogênio, que mata as bactérias anaeróbicas (que vivem sem oxigênio).

Aqui, precisamos ressaltar um desses mecanismos: a de produção de ácido lático. Eu sei que esse assunto é um pouco complexo, mas, segue essa linha de pensamento comigo: a molécula de ácido lático, a depender da maneira como é feita, pode ter uma apresentação espacial e uma maneira diferente de refletir a luz - em química, isso é chamado de levogiro ou dextrogiro. Esse conceito é importante porque toda a ação EFETIVA do ácido lático vem da sua forma dextrogira. A sua forma levogira não é capaz de agir da mesma forma, reduzindo (de maneira bem importante) todo esse mecanismo de defesa do lactobacilo.
Aliado a esse conceito de ácido lático, nas últimas décadas, a possibilidade de realizar estudo molecular nos mostrou que as comunidades bacterianas que colonizam a vagina são diferentes, e que, de forma geral, existem 5 grandes comunidades microbianas (também chamadas, em inglês, de community state types ou CSTs), que variam de acordo com a microbiota predominante, características clínicas das mulheres, distribuição étcnica, dentre outros.
Conceitualmente, essas comunidades foram divididas em I a V, isso pelo simples fato de terem observado que não existe apenas "um lactobacilo". Na verdade, os lactobacilos mais prevalentes são o Lactobacillus (L.) crispatus (CST I), L. gasseri (CST II), L. iners (CST III e IV) e L. jensenii (CST V). Vale ressaltar que, morfologicamente, os tipos de lactobacilos são bem parecidos e, para suspeitar de uma prevalência de cada tipo em uma microscopia, requer um olhar bem treinado (de forma geral, o lactobacilo iners é encurtado em relação aos outros). Vamos conversar, brevemente, sobre as diferenças dessas comunidades.
A CST I, dominada pelo L. crispatus, é a comunidade microbiológica mais estável, e que raramente mudava sua composição para outras comunidades, apenas durante a gravidez, a menstruação e a atividade sexual (nesses momentos, muda para a CST III de forma temporária). Apresenta um pH baixo devido ação do ácido lático.
A CST II, dominada pelo L. gasseri, é uma comunidade microbiológica um pouco mais dinâmica, mas, também com poucas mudanças para outras comunidades. Também apresenta um pH baixo devido ação do ácido lático.
A CST III, dominada pelo L. iners, é a que requer mais atenção durante toda essa discussão. Isso porque foi visto que o L. iners é capaz de produzir, de forma majoritária, o ácido lático do levogiro (ao contrário dos outros lactobacilos descritos anteriormente, que produzem o tipo dextrogiro). Isso faz com que essa seja a comunidade microbiológica dominada por lactobacilos mais sensível a alterações ambientes (gravidez, atividade sexual, menstruação). O seu ácido lático não é capaz de deixar o pH vaginal mais ácido, o que facilita a aquisição da vaginose bacteriana (e aí eu recomendo você ler esse post do Instagram aqui ao lado para entender mais sobre essa patologia e todos os seus potenciais riscos). Por fim, é a comunidade com a maior quantidade de fatores pró-inflamatórios.
A CST IV, também dominada pelo L. iners, apresenta, também, o predomínio de bactérias associadas à vaginose bacteriana, ou seja, é a evolução "ruim" da CST III. A produção de ácido lático é ainda menor, e é essa comunidade que tem forte associação com as principais complicações ginecológicas e obstétricas, como aquisição de ISTs, parto prematuro, rotura precoce da bolsa, abortamento e doença inflamatória pélvica.
A CST V, dominada pelo L. jensenii, é pouco estudada, mas, sabemos que é uma comunidade estável, com pH baixo e pouca evolução para outras comunidades.
E como eu Faço para ter o "Melhor" Lactobacilo?
Um conceito que precisa ficar claro nessa discussão é que não existe um "melhor" lactobacilo. Apesar da CST III estar associada a infecções, ainda não existe uma relação de causa e consequência direta - a exposição de risco a ISTs e outras bactérias a longo prazo e de maneira recorrente vai causar infecção independente da microbiota. Além disso, como eu disse antes, as comunidades microbianas variam também com a etnia da mulher: como exemplo, foi visto que mulheres 45% das mulheres brancas apresentam CST I, enquanto que apenas 14% das hispânicas apresentam essa mesma comunidade, e isso não quer dizer que as mulheres hispânicas apresentam mais ISTs ou complicações na gravidez.
Alguns estudos já saíram associando a ingesta de alguns alimentos ao crescimento de lactobacilos específicos: especialmente durante a gravidez, o consumo de laticínios se associou a um maior crescimento do L. crispatus em relação ao L. iners, e o consumo de grãos complexos (aveia, quinoa, arroz vermelho ou negro, dentre outros) se associou com predomínio de lactobacilos sobre as outras bactérias. Outros estudos mostraram que mulheres que realizam atividade física de moderada a grande a intensidade tinham maior número de lactobacilos quando comparadas com mulheres que realizavam apenas atividade física de baixa intensidade ou eram sedentárias.
Por fim, o tipo de método contraceptivo utilizado também influencia no tipo de lactobacilo existente. Os estudos ainda são preliminares e não demonstram nenhuma associação concreta, mas, o que temos é que o método (especialmente se ele é hormonal ou não) e sua maneira de usar influenciam na diversidade e na abundância lactobacilar.
Portanto, o que temos é aquele básico que sempre funciona: a alimentação saudável com realização frequente de atividade física é o melhor caminho para uma microbiota vaginal saudável, além das orientações adequadas com relação à higiene íntima e hábitos sexuais.
Conclusão
Para quem lida com infecções genitais diariamente, saber que existe "apenas" o lactobacilo é insuficiente. Precisamos entender que, além de existirem diversos tipos, cada tipo tem sua característica única, sua maneira de sobreviver e, consequentemente, influenciar a vida daquela mulher.
É claro que algumas mulheres naturalmente possuirão um tipo específico de lactobacilo, mas, isso não quer dizer que ele é "bom" ou "ruim" - ele apenas está lá, e cabe a essa mulher saber o que ela deve fazer para cuidar de si e de sua microbiota vaginal, que cada vez mais recebe a atenção que merece!
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